O dia 25 de Abril é um daqueles dias que só acontecem uma vez por ano. Quer isto dizer que não há possibilidade de confusão com o dia 29 de Fevereiro. É que isto de haver a possibilidade de não se confundir um dia com outro, nunca será demais repeti-lo, é precioso, porque todos sabemos quantos grandes conflitos mundiais se ficaram a dever a mal-entendidos com dias do ano.
Agora que esbaforiu este desabafo que lhe oprimia violentamente o tórax, passemos ao dia 25 de Abril, data inolvidável do glorioso matrimónio que explodiu as grossas e ferrugentas cadeias que nos amesquinhavam.
Esse casamento, no entanto, caiu na rotina e na falta de diálogo há já algum tempo. É senso comum que a rotina é a ascorosa lepra que apodrece inapelavelmente o tecido conjugal, levando à muito nojenta queda de langonhentos bocados matrimoniais nos momentos mais inoportunos. De igual modo, a falta de diálogo é a repelente peste que faz entumescer purulentos negros bubões nos refegos da relação afectiva, levando a que cada troca de palavras se transforme num lancetamento que faz correr pútrida e fétida matéria.
Procurando ajuda especializada, o casal enlaçado a 25 de Abril de ’74 encontrou-a na figura do maior especialista vivo em psicodinâmica de casais, o quadrilheiro de primeira apanha Doutor Moyúlio Moylachado Moylaz.
Veremos, imediatamente a seguir a mais este parágrafo desnecessário, a transcrição das sessões a que ambos, à vez, se submeteram. Como nota final, as transcrições das gravações são o mais fiéis possível e usando-se nomes fictícios e visivelmente absurdos para garantia deontológica de confidencialidade.
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Sessão com Sr.ª D.ª “Maria de Mocracia” (nome fictício)
Doutor Moyúlio Moylachado Moylaz (DMMM) – O que me pode dizer sobre o seu casamento com o Sr. José?
Sr.ª D.ª “Maria de Mocracia” (DC) – Eu sei lá, xodotôr. Olhe, parece-me a mim que já não é a mesma coisa, está-me a perceber?
DMMM – Mas em que é que o seu casamento já não é a mesma coisa? O que é que acha que mudou?
MdM – Ai, eu! Eu sei lá xodotôr... As coisas mudam com os anos, n’é? Eu nem sei que lhe diga. Sabe, o meu Zé já não é o mesmo de quando a gente era novos.
DMMM – Importa-se de me explicar melhor essa ideia!
MdM –Quando a gente se conhecemos, ele era todo charmoso. Sempre de roda de mim. Dizia que não podia viver sem mim. Que a vida dele não fazia sentido, que precisava de mim e queria casar-se comigo. Fazia-me muitas juras de amor e escrevia-me poemas e cantigas. Era assim muito amoroso e apaixonado. Eu sentia-me a moça mais linda do mundo, quando ele me dizia estas coisas, não é? Veja lá o xodotôr que ele meteu-se bastas vezes em trabalhos com a Guarda, por minha causa. O meu Zé era assim muito levantado das ideias. Bom moço, mas muito levantado! Ora veja lá: já se sabe que não se pode andar por aí pelas ruas a fazer barulho, não é? E o meu Zé estava sempre a dizer que vinha para a rua gritar que me queria muito, e outras coisas assim, para toda a gente saber. E eu dizia-lhe – «Oh Zé, tu vê lá no que é que te metes. Olha que a Guarda não gosta de barulho na rua, que as pessoas gostam de dormir descansadas e em sossego!». E olhe que às vezes eu não o conseguia amansar e depois ele ia mesmo rua fora. Depois a Guarda não achava bem que ele andasse a incomodar as pessoas com a chinfrineira que ele fazia, não é?, e vai daí pumba, afinfavam-lhe umas galhetas no lombo. Ai xodotôr, isso é que eu me arreliava. Ele trazia-me em cuidados que eu nem dormia. Mas depois, ao mesmo tempo eu até gostava, porque eu sabia que ele era assim doido porque era por minha causa e eu ficava toda babadinha com ele. E quando ele falava comigo era todo meiguinho e cheio de doçuras e carinhos... Oh eu sei lá, xodotôr, eu sabia que ele gostava muito de mim e que era assim porque era doidinho comigo!
MdM – Não, eu sei que ele ainda gosta de mim. Às vezes eu espreito-o a ver fotografias e os filmes do dia do nosso casamento e derivado daquele brilhozinho que ele tem nos olhos nessas alturas eu tenho a certeza de que ele ainda gosta de mim. E depois a gente já não vai para novos. Quer dizer, ainda não somos velhos, está bem de ver, mas pronto, já se sabe que quando se é novo as coisas são diferentes, não é? Mas às vezes lembra-me de quando era nova e das juras que ele me fazia e daquelas palavrinhas melosas que ele me dizia ao ouvido. Vamos lá ver, o meu Zé não me trata mal. Não é como este e aquele que são maus e batem nas mulheres sem razão. O meu Zé não! O meu Zé nisso é um homem em termos. A coisa é mais quando me lembra da mocidade. Sinto falta das meiguices e daquelas doidices que ele me dizia e fazia, não é? Pronto e agora ele já não é assim como ele era.
DMMM – Compreendo... E costumam conversar um com o outro?
MdM –Quer-se dizer, a gente fala, mas é mais nas coisas que são precisas para a casa e nisto e naquilo. Dantes a gente passava horas perdidas a falar. Ele contava-me, todo contente, os planos que tinha para a gente e assim. Depois de casarmos fomos falando cada vez menos sobre essas coisas. Logo a seguir ao casamento não, mas mais nos últimos tempos, ele liga-me cada vez menos. A gente fala mais daquelas coisas de todos os dias, da casa, dos vizinhos e coisas dessas. Mas dantes não. Ai, xodotôr, eu gostava muito de o ouvir falar porque ele dizia coisas muito bonitas. Ele tinha sempre muitas ideias e coisas que queria fazer e estava sempre a dizer que desde que estivesse comigo ia mudar o mundo e confessava-me essas coisas todas e as aflições e os sonhos que ele tinha. Mas agora já não. Agora passamos muito tempo sem dizer nada. É como se não tivéssemos nada para dizer um ao outro. E depois todos os dias é igual, a gente fala do tempo, das coisas da casa, dos vizinhos e disto e daquilo mas não conversa como dantes.
MdM – Ai xodotôr, nessas coisas também mudou. Ele sempre foi muito meiguinho, mas estava sempre a arder para aquilo. A toda a hora não me largava e estávamos sempre naquilo que até parecia que tinha o diabo no corpo, o raio do homem. Não ache o xodotôr que eu estou-me a queixar, mas às vezes até era demais. Ele não me deixava resolver os meus afazeres e a minha lida. Mas agora... mas agora ele já não me procura. Quando a coisa se dá, às vezes, sabe?, de longe a longe - assim no dia do nosso casamento, é costume - ele também não é assim fogoso como era dantes. Quando nos encontramos, ele parece-me que quer despachar aquilo, sabe xodotôr? Porque até parece que está preocupado e enfarinhado com outras coisas que o ocupam e tem pressa e está a perder tempo. É o que me parece. E eu gostava da meiguice dele antes, porque agora é assim parece que a despachar.
DMMM – Tem estado a contar-me que sente que o seu casamento está a passar por uma fase de menor fulgor, de menor emoção. Isto é, ao comparar o passado, em que se conheceram, eram jovens, em que se uniram, a “Sr.ª D.ª Maria de Mocracia” revela que o presente não está à altura desse passado e que tem saudades das emoções e do arrebatamento desses primeiros tempos. Tem, ao mesmo, revelado que notou uma grande transformação no seu marido e que essa transformação tem levado o vosso casamento a uma rotina que não a satisfaz. É isso?
MdM – Não xodotôr, quer dizer sim. É isso. Eu queria que ele sentisse falta de mim, como era dantes. Quando estava sem me ver assim algum tempo, corria por mim e parecia que morria porque não me tinha. Eu sabia que lhe fazia muita falta e ele dizia que eu era coisa que ele mais precisava no mundo. E que sem mim não era uma pessoa, era infeliz e miserável e que não... Ai, como é que ele dizia? Era tão bonito... era... ai como era? Ah, que estava incompleto sem mim! Que nem todo o ouro do mundo pagava ter-me. Eu preciso de ser assim estimada e um bocadinho mimada de vez em quando. Desde que me tem o meu Zé já não me mostra que precisa de mim, já não me dá o mesmo valor. E se ele fica sem mim, o que é que vai ser dele? Sem mim ele não consegue fazer nada. E eu queria que o meu Zé me desse mais valor, me acarinhasse mais, me protegesse. Queria que ele festejasse o nosso aniversário de casamento a sério, com gosto e alegria. O que eu queria era que o meu Zé me estimasse. Eu não quero que o meu Zé me dê prendas, eu quero que mê valor. Eu não sei o que vai ser de mim de hoje a amanhã. E se me dá alguma coisinha má? Como é que é? E se me acontecesse algum acidente e eu desapareço? Eu só queria que o meu Zé tomasse mais bem conta de mim. Era só isso.
DMMM – Muito bem. Acho que podemos dar esta sessão por terminada. Agradeço imenso por ter partilhado o que lhe ia na alma, com sinceridade. Eu agora vou ouvir o Sr. José Pó Vinho e depois encontramo-nos todos aqui para eu vos dar a minha opinião*.
MdM – Eu é que agradeço xodotôr. Falar faz bem à alma e tira aquelas coisas que envenenam a alma de uma pessoa. E depois, quando uma pessoa está assim a falar nas coisas, depois até dá fé do que é que lhe está a pesar no peito. E a gente não pode falar de certas coisas com qualquer um, porque senão amanhã já toda a gente sabia na praça da minha vida. E a minha vida não é p’r’andar por aí nas bocas do povo, não é? Com o xodotôr é diferente porque é como se fosse um médico mas destas coisas da alma de uma pessoa, não é? Muito obrigadinha e até logo.
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Sessão com o Sr. José Pó Vinho (nome fictício)
DMMM – Diga-me lá, Sr. José Pó Vinho, como é que acha que vai a sua vida de casado com a Sr.ª D.ª Maria de Mocracia?
Sr. José Pó Vinho – Oh sôtor, quer-se dizer, eu acho que vai normal. Aqui há atrasado ela começou a insistir que tínhamos que ir ver um especialista, que eu não lhe ligava como dantes e que já não era o mesmo com quem ela casou e essas coisas do género. Não sei onde é que ela vai buscar essas coisas. Deve ser às novelas, na certa. Mas para não a ouvir mais eu disse que sim, que vínhamos cá falar c’o sotôr, disse-lhe assim para lhe tirar o sentido. Cuidei que lhe passava a ideia mas ela lá andou à procura e cá estamos, mas nem sei bem o porquê. Eu acho que está tudo dentro do normal. Há aqueles dias melhores e outros piores, mas tudo dentro daquilo que é o normal de toda a gente.
DMMM – Mas pelo que me diz, depreendo que sentiu que a sua esposa estava insatisfeita, ou não?
JPV – Ela teve sempre um feitio complicado, é certo. Mas nos últimos tempos tem andado mais resmungona e chata. Em sendo um carro, sotôr, a minha Maria era um daqueles carros que precisam de muita manutenção. Quer dizer, não estou a dizer que ela me gasta o dinheiro, não é isso, que ela é responsável e sabe que custa a vida. Mas ela quer só paninhos quentes e que eu a traga ali nas palminhas a toda a hora. E está sempre com coisas que eu já não lhe faço declarações de amor e que não lhe ligo e que mais não sei quê e que mais não sei quantos e que eu já não lhe escrevo poemas e cantigas e só lhe dou um cravo uma vez por ano e é por obrigação. Eh pá, não me dá um segundo de descanso, sempre com a mesma conversa. Anda chata, agora! Quando a gente namorávamos e depois de casados, nos primeiros anos, ela não era assim. Pôs-se assim!
DMMM – Sente que ela mudou muito desde o namoro e dos primeiros anos de casado?
JPV – Ohhh, sei lá bem sotôr. As pessoas vão ficando mais velhas e acomodam-se uma à outra, não é? Mas ela parece que não está de bem com nada. E nada do que eu faço chega e que qualquer dia dou por mim sem ela e depois é que eu vou ver a falta que ela faz e mais isto e mais não sei quantos. Consome-me a paciência! Mas olhe que eu meti-me muitas vezes em trabalhos por causa dela, porque não queriam que a gente namorasse. Mas eu não estava para fitas. Era ela que eu queria e não me deixei levar na cantiga de que ela não servia para mim e que eu não tinha pedalada para ela. E olhe que ainda apanhei algumas à conta de ser teimoso.
DMMM – Fale-me do vosso namoro.
JPV – Ninguém queria que a gente se namorasse. Teve que ser às escondidas. Mas quando eu vi aquela cachopa tão bonita – e olhe sotôr que ela era a coisa mais linda que eu já vi. Mas era mesmo, sem estar aqui com arcas encoiradas! Era linda, linda e muito bem feitinha, muito jeitosinha. Eu dei conta que ela também engraçou comigo, porque ela mandava-me beijos, piscava o olho assim à sorrelfa. Depois mandava recadinhos a dizer que se eu quisesse era capaz de me fazer muito feliz e que mudava a minha vida. E um homem começa-se a afoguear. Eu andava sempre com a tenda armada na parte da frente das calças, de tão boa que ela era. Provocava-me a toda a hora. É que, ainda por cima, andavam sempre em cima a controlar o que ela fazia, com quem falava, e eu, como era levado da breca, não me encolhi, fui-me a ela. Quando apanhávamos as nossas famílias distraídas, trocávamos uns beijitos, uns namoriscos, uns amassos valentes tudo à socapa, mas tudo às escondidas. Quer dizer, ela para mim era como se fosse uma princesa que estava fechada num castelo de um tio malvado que lhe tinha roubado o reino e tinha posto uns dragões a guardá-la e tal. Mas eu ia soltá-la e casar com ela. Eu era assim dado a estas coisas e poemas e ideias, quando era novo, e ela encantava-se toda comigo por ser assim. E depois ela prometia que me fazia feliz quando a gente conseguisse fugir – e a gente esteve quase a fugir duas ou três vezes - e que era a mulher para mim e pronto, essas coisas todas de quando se é novo.
DMMM – Acha que foi o casamento que pôs fim a esse entusiasmo da juventude?
JPV – Não sei, sotôr. Não sei... A princípio, depois de casados, a gente continuava na mesma como era nos tempos de namoro. Mas depois a coisa vai esmorecendo, não é? É normal. Já não é preciso andar a combinar coisas às escondidas nem a fazer planos para fugirmos os dois. Nem a dar uns beijitos rápidos e uns apalpões à pressa. E ela atazanava-me muito, mostrava um bocadinho daqui, um bocadinho dali, esfregava aqui e além mas depois fugia, só para me atiçar. Havia muito aquela coisa de ter que ser às escondidas e de andarmos a comer o fruto proibido e tal. Mas depois de casar... não sei, já não era preciso andar assim a correr atrás dela, não é? Já a tinha comigo, todos os dias! E eu dou-lhe uma flor quando fazemos anos de casados. Um cravozinho vermelho, escolhido a dedo. O mais bonito que houver no mercado. Mas quer dizer, não pode ser sempre a toda a hora, não é? Também tenho direito a sentar-me um bocado a ver a bola; ou ir à tasca virar uns martelos com a malta, ou não? Eu sou um homem.
DMMM – Disse-me há pouco que a sua esposa lhe diz que qualquer dia se vê sem ela. Acha que o seu casamento pode estar em risco, que pode ficar sem a sua esposa?
JPV – Nããããããããaã! Ela diz isso mas é só assim c’os nervos. Nãããã... Essas conversas é para picar, para me meter medo. Qual risco, qual carapuça! Nós casámos para toda a vida. E já agora, ela ia para onde? Ela tem aquele feitio especial mas é deixá-la acalmar um bocado que a coisa passa-lhe.
DMMM – Pelo que me diz, o Sr. José nota que existe alguma tensão e desconforto entre os dois! Conversarem em igualdade e com franqueza, sobre estas questões, não seria uma boa opção no sentido de restabelecer uma concórdia dentro do lar e chegarem a um patamar de entendimento mútuo?
JPV – Não! Nós já falamos muito do que é preciso. Agora andar com paleios de telenovela. E eu já sei muito bem o que ela vai dizer: «Achas que eu duro para sempre! Atiras-me para cima as responsabilidades todas da casa! Julgas que uma flor um dia por ano é o suficiente para tapar o que não me ligas nos outros dias todos! Andas sempre na galderice e nas comezainas e agarrado à televisão a ver a bola mas para mim não há tempo!» e «Só vais dar pela minha falta quando já não me tiveres!». Uma pessoa também se cansa de estar sempre a ouvir remoer e repisar no mesmo. Eu também trabalho e muito! Não pode ser sempre a exigir, a exigir, a exigir. Um bocadinho de apoio também caía bem, não é? Já não somos miúdos novos e eu também tenho as minhas obrigações. Não posso deixar tudo só para andar com sua excelência ao colo a toda a hora. É melhor o sotôr não lhe andar a falar de conversarmos, que eu tenho dias que já nem a posso ouvir.
DMMM – Claro, estou a compreender. De qualquer maneira, parece-me que temos já o suficiente para podermos terminar por aqui e depois falarmos em conjunto, já a seguir*. Agradeço a franqueza e a abertura em falar comigo. Apesar de ser um profissional e estar obrigado por um código de ética rigoroso, compreendo perfeitamente que este tipo de assuntos são muito delicados de expôr perante um estranho que, apesar de tudo, eu sou.
JPV – Eu é agradeço ao sotôr por andar a aturar esta paranóia da minha Maria. Gabo-lhe a paciência mas acredite que não lhe invejo a sorte. Passar o dia a ouvir estas coisas não há-de ser pêra muito doce, mas sempre tem uma ideia do que eu passo.
*A avaliação do Dr. MMM encontra-se muito sumariamente esquematizada em dois pontos essenciais na introdução, não se indo mais longe por questões deontológicas e de privacidade que os leitores naturalmente compreendem.
2 comentários:
É, MOYLITO, essa equiparação, mesmo que exagerada, não deixa de ser verdadeira. Há qualquer coisa que se acha tão nossa e tão normal estar no nosso dia a dia, que nem se percebe que um dia se pode perder... :)
Tudo tem de ser "regado", para dar bons frutos. A democracia, como o casamento e até a amizade... :D
Teté,
é bem verdade o que dizes, mas de qualquer modo este texto não correu grande coisa. Um dia reescrevo :)
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